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LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO E A MATRIX: Por Wadih Habib
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1. A MATRIX E O CRÉDITO

     Será que a ignorância é uma benção? Quem assistiu ao filme Matrix, sabe o dilema de Neo quando Morpheus lhe apresenta duas pílulas de cores diferentes e diz:

Esta é a sua última chance. Então você não será capaz de recuar. Se você tomar a pílula azul, fim da história: você vai acordar em sua cama e acreditar no que quiser. Se você pegar o vermelho, estará no país das maravilhas, e eu mostrarei a você até onde vai a toca do coelho. Lembre-se de que a única coisa que ofereço é a verdade, nada mais.

     No diálogo, a pílula azul é a permanência do consumidor na realidade manufaturada da Matriz enquanto que a pílula vermelha funcionará como um passe para a descoberta do mundo real e possível desconexão da Matrix. Existe apenas uma chance de escolha, sem possibilidade de arrependimento. Neo escolhe a pílula vermelha e vai ao encontro da toca do coelho.

     Você deve estar se perguntando o que é que o filme Matrix tem a ver com o tema proposto, não é verdade? Pois bem, explicarei.

     Neo, da nossa narrativa, é o consumidor brasileiro, bombardeado e assediado com a oferta de crédito fácil do tipo: “sem consulta ao SPC/SERASA e sem comprovação de renda”. Pois é! essa é a oferta do crédito de maneira irresponsável, além disso, as campanhas de marketing são poderosas; os panfleteiros, nas calçadas, pegam o consumidor pelo braço e o levam direto para o escritório da financeira de onde só sai com o contrato assinado, se for aposentado ou servidor público o assédio é ainda maior. Esse é o modo de agir adotado pela Matrix.

     A pílula azul é a submissão do consumidor aos ditames publicitários que o leva a ilusão de que o mundo tudo lhe proporcionará. A pílula vermelha representa o despertar da consciência que leva ao rompimento com o sistema. Morpheus é a lei 14.181/2021 (Lei do Superendividamento).

    O consumidor seduzido pela pílula azul, acredita que pode comprar o celular novo em doze parcelas sem juros, a televisão nova 4k; o relógio novo; roupa nova; sapato novo; mais um dinheiro na hora por intermédio de um empréstimo consignado, ah! Dá para fazer as compras de mercado em três vezes sem juros no cartão de crédito e, de publicidade em publicidade, vai acumulando dívidas, acreditando que está no controle até que, de repente, não consegue mais pagar as contas, seja porque perdeu o emprego; teve doença na família; seu negócio foi impactado pelo fechamento compulsório em virtude da pandemia provocada pelo novo corona vírus etc. O certo é que a inadimplência acarreta sua exclusão social e ele continuará conectado a Matriz, agora só lhe resta recorrer ao cartão de crédito de familiares ou tomar dinheiro emprestado com agiotas, eis a questão.

    Então qual seria a salvação? A pílula vermelha?

     Quando o consumidor toma a pílula vermelha descobre a verdade e sente que precisa se desconectar do sistema e essa possibilidade veio à tona com o encontro com Morpheus (Lei 14.181 de 02 de julho de 2021) que, entre outras coisas, esclarece a Neo ser dever do Estado prevenir e tratar o superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor. Além de garantir o direito a práticas de crédito responsável de modo a preservar o mínimo existencial, por meio da revisão e da repactuação da dívida.

     Morpheus explica que a prevenção deverá ser feita por intermédio de educação financeira, enquanto que o tratamento se dará pela atuação de órgãos públicos no estabelecimento de mecanismos de solução extrajudicial e judicial, instituindo-se núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento.  Esclarecendo que a preservação do mínimo existencial, deverá ser observada tanto na concessão do crédito quanto na repactuação de dívidas.

     Neo, indaga a Morpheus como a Matrix pode lhe induzir ao superendividamento; Morpheus, indaga de volta: Me diga o que você fez a semana passada? onde esteve? o que comprou? sobre o que pesquisou no seu smartphone ou computador? – Neo responde: Claro que não consigo lembrar de tudo com precisão..., lembro apenas de algumas coisas, a exemplo, no domingo fui passear no Shopping com a família, mas não consigo lembrar de tudo o que fiz. – Morpheus pede o smartphone de Neo; acessa os dados de localização e lá estão todos os passos dados, todos os estabelecimentos comercias visitados, está tudo, tudo ali. Depois, acessa os dados de navegação e encontra todos os sites visitados e todas as pesquisas realizadas na internet, acrescentando: É assim que a Matrix lhe monitora e sabe tudo sobre você, suas preferências, lugares e até mesmo o que está pensando, depois, é só lhe bombardear com anúncios específicos que você, inconscientemente, consumirá. Pronto; essa é a forma, esse é o sistema.

     Na sequência, Neo indaga de que forma a lei lhe protegerá, afinal, quem pode ser considerado consumidor em situação de superendividamento?

  1. CONCEITO DE CONSUMIDOR EM SITUAÇÃO DE SUPERENDIVIDAMENTO

     Morpheus esclarece que consumidor em situação de superendividamento é a pessoa natural que, de boa-fé, estiver em situação de manifesta impossibilidade de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial.

     Essa é a parte em que Neo pergunta a Morpheus: o que é consumidor de boa-fé? O que significa manifesta impossibilidade de pagar a totalidade de suas dívidas e quais dívidas seriam essas? Afinal, o que é o mínimo existencial? Morpheus explica:

       1.1 CONSUMIDOR DE BOA-FÉ EM MANIFESTA IMPOSSIBILIDADE DE PAGAR A TOTALIDADE DE SUAS DÍVIDAS

     É a pessoa física que, sem planejar dar calote e, obedecendo a sua capacidade de pagamento no momento da realização das contratações, assumiu dívidas que, posteriormente, em face de circunstâncias alheias a sua vontade se tornaram impagáveis sem comprometimento do mínimo existencial. Dentro do mesmo conceito também se enquadra o consumidor em estado de vulnerabilidade que, seduzido pelas fortes campanhas de marketing e pressões exercidas pelos fornecedores, perde a capacidade de gerenciamento financeiro e sucumbe ao descontrole do crédito fácil e fornecido de modo irresponsável.

     1.2 DÍVIDAS QUE SE ENCAIXAM NA PROTEÇÃO CONFERIDA PELA LEI E DÍVIDAS EXCLUÍDAS

     Morpehus diz que se encaixam na proteção legal as dívidas contraídas de boa-fé, pela pessoa física, em seu benefício ou da família, excluindo-se, portanto, as aquisições de produtos ou serviços com o intuito de práticas comerciais; as dívidas contraídas mediante fraude ou má-fé e nítido proposito de não realizar o pagamento; que decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor; de financiamento imobiliário e rural.

     Obvio que a Lei não tem por escopo proteger a irresponsabilidade financeira deliberada, ao contrário ela visa proteger a pessoa prudente que, por circunstâncias alheias, perdeu a capacidade de pagamento ou foi ludibriada pelo fornecedor do crédito.

             1.3 MÍNIMO EXISTENCIAL

     Para explicar o mínimo existencial Morpheus invoca a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, que estabeleceu a proteção universal a direitos básicos para uma vida digna independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, religião ou qualquer outra condição, atribuindo a todas as pessoas um direito a um nível de vida suficiente capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis à vida, direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias fora do controle.

Por fim, destaca que o STF, em julgados recentes, tem se posicionado no sentido de que o conceito de mínimo existencial exige sejam consideradas as peculiaridades do caso de cada pessoa, pois se trata de direitos que assumem uma dimensão individual, para que se possa categorizar o coletivo.

Desse modo, pode ser dito que o mínimo existencial é o direito a um padrão de vida sem luxos, porém com dignidade, isso significa a garantia do direito a moradia, alimentação, saúde, vestuário, educação, meios de locomoção e, por obvio, acesso a saneamento básico, água, energia e algumas comodidades como eletrodomésticos e televisão.

  1. O QUE MUDA COM A LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO

     No fornecimento de crédito e na venda a prazo, o fornecedor ou o intermediário deverá informar o consumidor, prévia e adequadamente, no momento da oferta, sobre o custo efetivo total da transação, computando a taxa efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento; o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de 2 (dois) dias; o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor; o direito do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito.

     Nos empréstimos na modalidade de consignação em folha de pagamento, a formalização e a entrega da cópia do contrato ou do instrumento de contratação ocorrerão após o fornecedor do crédito obter da fonte pagadora a indicação sobre a existência de margem consignável, ou seja, se o valor a ser deduzido do rendimento, juntamente com a soma de outras prestações assumidas anteriormente fica dentro da margem de 35% da renda líquida do empregado, aposentado ou pensionista.

     Fica vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, de forma publicitária ou não as seguintes práticas: I- Indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da capacidade de pagamento do consumidor; II - ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo; III - assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio; IV - condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais.

     Isso significa que o fornecedor do crédito tem por obrigação informar e esclarecer adequadamente ao consumidor, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes na operação, bem como, sobre as consequências genéricas e específicas em caso de inadimplemento. Devendo ainda, avaliar a capacidade de pagamento do consumidor como forma de prevenir o superendividamento, além de ter que entregar cópia do contrato de crédito. O descumprimento dessas obrigações poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.

      Morpheus acrescenta que nos casos em que o consumidor, ao adquirir um bem, celebra um contrato acessório (conexo) de financiamento (situação muito comum nas aquisições de veículos), a lei assegura que o exercício do direito de arrependimento alusivo ao contrato principal, implica a resolução de pleno direito do contrato que lhe seja conexo. Assegurando ainda, que se houver inexecução de qualquer das obrigações e deveres do fornecedor de produto ou serviço, o consumidor poderá requerer a rescisão do contrato não cumprido contra o fornecedor do crédito.

     A invalidade ou a ineficácia do contrato principal implicará, de pleno direito, a do contrato de crédito que lhe seja conexo, ficando ressalvado ao fornecedor do crédito o direito de obter do fornecedor do produto ou serviço a devolução dos valores entregues, inclusive relativamente a tributos.

      De igual modo, as administradoras de cartão de débito, crédito ou outro meio de pagamento similar, ficam impedidas de realizar ou proceder à cobrança ou ao débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que tenha havido a notificado da administradora do cartão com antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura.

  1. DA CONCILIAÇÃO NO SUPERENDIVIDAMENTO’

      Neo indaga a Mopheus de que modo a Lei agirá para resolver a situação do superendividamento. Morpheus esclarece:

      Nos moldes como estipula a lei, o consumidor pessoa física em situação de superendividamento, poderá recorrer ao poder judiciário e requerer que o juiz instaure o processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, na qual deverão estar presentes todos os credores. Nesta audiência o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservando o mínimo existencial suficiente a sua subsistência.

     Disciplina a Lei do Superendividamento que o não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, à audiência de conciliação, acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória.

     A sentença judicial que homologar o acordo tem eficácia de título executivo e força de coisa julgada e deverá descrever o plano de pagamento da dívida; a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor dos bancos de dados e de cadastros de inadimplentes; ficando seus efeitos condicionados à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.

     Se porventura, não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado, para que, no prazo de 15 (quinze) dias, juntem documentos e as razões da negativa de concordância com o plano apresentado.

     Após o atendimento aos requisitos legais do contraditório e ampla defesa, o juiz fixará o plano judicial compulsório assegurando, entretanto, aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.

     Faculta a Lei, ao juiz, o poder de nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos.

     Por fim, determina a Lei que compete concorrente e facultativamente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, com possibilidade de o processo ser regulado por convênios específicos celebrados entre os referidos órgãos e as instituições credoras ou suas associações.

Findas as explicações, Morpheus vira-se para Neo e diz: - Vou te explicar duas coisas, a primeira é que a libertação somente vai ocorrer em relação aos superendividados que terão que fazer escolha entre pagar as   dívidas ou realizar as despesas necessárias à sua sobrevivência e da família em condições dignas e isso significa que o conceito de superendividado variará de acordo com a realidade de cada um; a segunda é que, antes você tinha que negociar individualmente com cada credor, o que dificultava o processo, agora você pede ao juiz que convoque todos os seus credores para uma negociação global e, se não houver acordo o juiz, a seu pedido, instaurará processo para repactuação da dívida, fixando, ao final, o plano judicial compulsório. Essa é a grande vantagem libertadora.

Depois de prestadas todas as explicações, Neo indaga: Será que verdadeiramente essa é a libertação? Não será mais uma manobra da Matrix?

Por: Wadih Habib – Advogado sócio da Habib Advocacia e Assessoria Jurídica, pós-doutor em direto processual pela Universidad de La Matanza, Buenos Aires, Argentina. Professor da pós-graduação em direito processual do trabalho do Centro Universitário Dom Pedro II.

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